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A censura e a tentativa de homenagem a um marinheiro negro

João Bosco e Aldir Blanc. A junção desses dois grandes nomes da nossa música, resultou em clássicos do cancioneiro nacional, mas em especial uma letra me chama a atenção, não apenas pela riqueza harmônica ou toda a cadência do violão de João Bosco, mas sim pelo motivo que os levou, na década de 70 (em pleno regime militar) a lutar tanto pela liberação da censura.

 

A canção em questão, que diga-se de passagem é uma das mais conhecidas do artista, se chama 

"O Mestre Sala dos Mares". A letra é uma homenagem da dupla à João Cândido Felisberto, mais conhecido como "O almirante negro" tendo sido um militar brasileiro, mas ao contrário daqueles que também ostentavam tal cargo e patente e usavam de todo o poder permitido (e também o que não era devido), para execrar uma boa parte da população, em especial durante os anos de chumbo.

João liderou o movimento conhecido como "A Revolta da Chibata", que foi idealizado por dois anos e resultou em um motim que durou do dia 22 ao dia 27 de novembro do ano de 1910, tendo ocorrido na baía de Guanabara (Rio de Janeiro).

O que motivou, e também foi responsável, pelo nome adotado pelo movimento, foi a indignação, dos então marinheiros, contra os rígidos catisgos físicos a eles impostos (em casos tidos como graves, usavam da violência de chibatas). Os militares envolvidos ameaçaram bombardear a cidade do Rio de Janeiro caso algo a respeito disso não fosse feito. A Revolta acabou com a rendição dos marinheiros envolvidos, onde ocorreu o desarmamento dos navios, com bases em um decreto de anistia adquirido junto ao governo.

 

Cerca de duas semanas depois, houve o que foi chamado de segunda revolta(sem nenhuma ligação com João e seus demais companheiros), o que culminou na morte de marinheiros indefesos e a expulsão de tantos outros, dentre estes, João Candido; Que ainda assim, sob acusação de favorecer fuzileiros rebeldes, eis que foi preso, na Ilha das Cobras, tendo presenciado o sofrimento e morte de muitos dos seus companheiros, conforme relatou a alguns jornais e fontes. Após certo período, João foi dado como louco, transferido para o "hospital dos alienados" e depois novamente conduzido à prisão na Ilha das Cobras.

 

Após, enfim, ser inocentado, muitos foram os sofrimentos pelos quais passou João Candido, passando por dificuldades que o levaram a trabalhar como estivador no cais do porto, até mesmo tendo enfrentado o suicídio de sua segunda esposa; Além de ter sido, posteriormente, preso novamente.

 

João foi discriminado e marginailzado até sua morte, no ano de 1969, e tendo em vista uma vida de tantos percalços, não há de se admirar o fato dos compositores, já citados, terem tomado a decisão de mesmo de maneira póstuma, homenagear o "Almirante Negro" em forma de canção, um ano após sua morte.

 

Como de praxe na época, tudo devia passar pelo crivo da censura e foi de se admirar que a canção tivesse por tantas vezes sido barrada pelos censores.

Acredito que não tenham ligado diretamente a canção à figura de João Candido, mas mesmo assim, nada de liberação. Buscando de alguma maneira se "adequar" às "normas impostas", os compositores realizaram uma série de alterações na letra (inclusive o título inicial que seria "Almirante Negro" para "Navegante Negro", no intuito de que não houvesse nenhuma ligação a uma patente militar); mas eis que o real motivo, que não permitia a liberação da música, foi enfim conhecido...

Aldir Blanc afirmou, posteriormente, ter ouvido de um dos censores que o motivo real era simples, o preconceito racial (que existiu e ainda existe, porém de maneira velada) no período da ditadura. A quantidade de vezes em que a palavra "Negro" aparecia na música (inclusive nos dois títulos iniciais) já seria por sí só suficiente para que a canção jamais pudesse ser gravada e reproduzida.

 

Mesmo indignado com tamanha prova de ignorância e segregação, os autores optaram por alterar o título para este que hoje conhecemos e a canção se tornou um estrondoso sucesso não apenas na voz de João Bosco, mas também de Elis Regina.

 

Segue abaixo letra da canção:

 

O mestre sala dos mares
(João Bosco / Aldir Blanc)

 

Há muito tempo nas águas
Da guanabara
O dragão no mar reapareceu
Na figura de um bravo
Feiticeiro
A quem a história
Não esqueceu
Conhecido como
Navegante negro
Tinha a dignidade de um
Mestre-sala
E ao acenar pelo mar
Na alegria das regatas
Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas
Jovens polacas e por
Batalhões de mulatas
Rubras cascatas jorravam
Das costas
Dos santos entre cantos
E chibatas
Inundando o coração,
Do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro
Gritava então
Glória aos piratas, às
Mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça,
Às baleias
Glórias a todas as lutas
Inglórias
Que através da
Nossa história
Não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais.

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